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sexta-feira, 8 de março de 2013

A Dívida

"Eu vejo coisas que ninguém mais é capaz de ver,e talvez por isso, as pessoas devem me achar estranha..."
(Seventh Sister)

Fazia frio e a água da torneira estava muito fria; Raimundo, depois de tomar o banho, olhou o próprio semblante entristecido no espelho embaçado, então, passou a toalha no vidro e se sentiu estranho, envelhecido antes do tempo no auge dos seus trinta anos. Lentamente, ainda com a toalha no alto da cintura, foi ao quarto dos três filhos, beijando-os, carinhosamente, indo a seguir para o quarto onde a esposa o esperava. Calmamente, ele a envolveu em seus braços, prometendo voltar logo, assim que fosse possível, ela tentou sorrir, vendo-o sair com a pequena mala.  A chuva fina da madrugada,  seguida de uma brisa gelada,  aumentava  ainda mais o frio, tornando aquele momento desolador para Raimundo. Envolto em pensamentos, quase mecanicamente, entrou no velho carro e partiu, pensando na esposa, nos filhos, nas dívidas acumuladas e no amigo José, sim, o Zé era um grande amigo de infância, sempre presente em todos os momentos de sua vida, tais  pessoas que tanto amava estavam constantemente em sua mente. O tempo passou rápido e logo ele estava saindo da cidade, depois da próxima curva, adentrando a rodovia que o levaria à outra cidade em busca de um emprego.  De repente, o carro passou por cima de algo, começando a deslizar na pista molhada, Raimundo ainda tentou frear, mas perdeu o controle do carro que foi capotando, sem controle, enquanto o homem em poucos segundos lembrava de toda sua vida numa fração de segundos como se estivesse assistindo um filme da própria vida. O carro despencou num abismo e ali, dentro do carro, não houve tempo para nenhuma ação, Raimundo morreu.
Tudo aconteceu muito rápido e após a burocracia no IML, se deu o velório na casa onde habitava a família; muitos amigos e parentes compareceram, a esposa traumatizada, estava sentada ao lado do caixão. Quando o amigo José chegou transtornado, aproximou-se do corpo e orou, chorando pela perda do companheiro de infância e ao passar a mão sobre a cabeça do defunto, viu duas lágrimas rolarem, com isso ficou mais impressionado, secou as lágrimas com o lenço e orou mais ainda. No final daquela tarde cinzenta e chuvosa, o corpo foi sepultado. A noite chegou enlutando os corações consternados pela morte repentina de Raimundo; José, o amigo, não conseguia dormir, pois a cada virada que dava na cama, via nitidamente o companheiro no canto do quarto. Assim acontecia por onde ele andava: no trabalho, quando ficava sozinho, dentro do carro, no banco de trás, em toda parte que ia, lá estava Raimundo. Essa situação começou a perturbar José que em certa madrugada, tomou coragem e perguntou ao amigo finado o que ele queria, ele então respondeu:
- Quero que você perdoe a dívida que tenho contigo porque agora não poderei mais pagar.
- Mas é só isso? Somos irmãos, meu amigo, você não me deve nada.
- Obrigado, preciso que você vá no bar onde estão nossos amigos, amanhã, à noite, e diga isso para todos ouvirem.
José finalizou o diálogo, respondendo:
- Está combinado!
Rapidamente, adormeceu. O dia amanheceu e José trabalhou tranquilamente sem a presença do amigo morto. No final do expediente, como havia combinado, foi ao bar onde costumava se reunir para beber com os amigos. O bar estava cheio e o comentário não poderia ser outro, o falecimento de Raimundo, de repente, ele apareceu e José prontamente afirmou:
- Pessoal, o José tinha uma dívida comigo mas já não me deve nada, ouviram?
Todos levantaram o copo de bebida sem entenderem bem o pórquê dessa declaração. Telepaticamente, Raimundo respondeu a José:
- Agora diga que a minha esposa também não deve nada, é importante pra mim.
Novamente, José afirmou em voz alta:
- Pessoal, escutem, a D. Luísa, mulher do meu amigo Raimundo, também não está me devendo nada, ouviram?
Um dos amigos, o Pedrão, então respondeu:
- Claro, Zé, mas qual é o problema, rapaz? Por que isso, agora.
- Por nada não, Pedrão, é só pra vocês saberem.
Nesse momento, Raimundo sorriu fraternalmente e acenando desapareceu. José voltou a ter um sono normal, contudo, nunca esqueceu desse caso, muito menos do amigo que considerava irmão.

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